Baixada.doc – itinerários de uma ideia

Por Tiago Monteiro[1]
Não é de hoje que as sociedades efetuam as mais diversas trocas simbólicas graças à mediação de múltiplas matrizes culturais. O que a contemporaneidade parece trazer de novo é a intensificação de tais processos, proporcionada, entre outras circunstâncias, pelo aperfeiçoamento das tecnologias de informação e comunicação e a consolidação de uma sociedade conectada em rede.
Estar conectado é, em larga medida, fazer-se ver. Em um nível mais profundo é, também, fazer-se conhecer, promover a circulação de informações, tanto quanto possível, a partir de pressupostos que estimulem o exercício da cidadania e da participação ativa na dinâmica social, econômica e política de que fazemos parte. A popularização das ferramentas digitais, com interfaces amigáveis e relativamente acessíveis em termos financeiros, somada à multiplicação dos canais de transmissão desta produção dita “independente”, diminui a necessidade de mediação dos canais de mídia hegemônicos e legitimados que, no mais das vezes, fecham os olhos para todo e qualquer exercício de auto-representação que fuja do esperado, daquilo que é disposto pelo senso comum.
A linguagem do documentário parece se prestar especialmente a esta tarefa, pois ao contrário do criador de “ficção” (mesmo aquela de baixo orçamento, empreendida com recursos mais modestos), a quantidade de variáveis que o documentarista precisa gerenciar no momento da gravação e edição de seu produto é consideravelmente menor. Cenários em estúdio, figurinos, atores, necessidade de adequação a um roteiro prévio, nada disso, em regra, constitui elemento indispensável para a concepção de um documentário. Não à toa, no período histórico do cinema brasileiro nomeado de Retomada (após 1994, quando são mitigados os efeitos desastrosos da era Collor no âmbito do audiovisual, com o fechamento da Embrafilme e a paralisação quase total da atividade cinematográfica no país), é flagrante o aumento exponencial da produção no âmbito deste gênero.
A efervescência das décadas de 90 e 00 no âmbito dos documentários parece ter servido de estímulo para que muitos jovens realizadores optassem por iniciar suas atividades na seara do audiovisual dentro dos códigos deste formato narrativo. Contudo, a facilidade no acesso às ferramentas de produção audiovisual não parece ter caminhado no mesmo ritmo do acesso da imensa maioria da população brasileira a estes filmes. Particularmente no que diz respeito aos documentários, a dificuldade no acesso às produções contemporâneas ou mesmos aos “clássicos” do gênero no Brasil (como efeito pernicioso de uma política de concentração guetificada do circuito exibidor), além de comprometer a construção de um repertório fílmico a partir do qual determinados processos identitários podem vir a tomar forma, termina por atuar no sentido de inibir a produção situada à margem dos circuitos hegemônicos, no qual a problemática da auto-representação e da representação do Outro desempenham papel preponderante.
Para o morador das zonas Sul e Oeste do Rio de Janeiro, o “mundo civilizado” muitas vezes termina na entrada da primeira galeria do Túnel Rebouças, ocasionalmente se estendendo até o Maracanã graças à presença do estádio de futebol. Nilópolis, em particular, só alcança alguma visibilidade midiática à época do Carnaval, em virtude do desempenho da Escola de Samba Beija-Flor na Sapucaí. Notícias oriundas deste lado da Região Metropolitana só rompem a barreira do zoneamento geográfico do Rio quando giram em torno da problemática da criminalidade na Baixada Fluminense, o que ajuda na perpetuação de incontáveis estereótipos. E diferentemente de outras regiões do país e da cidade do Rio cuja apreensão, por parte do grande público, também se dá através da mediação de diversos estigmas (aqui, penso de maneira especial nas favelas cariocas), a Baixada Fluminense é pouquíssimo representada pelo audiovisual brasileiro, o que reduz a própria margem de negociação, consenso e conflito a partir dos quais toda dinâmica de identidade e representação se estrutura. Em última instância, os próprios moradores destas regiões muitas vezes desconhecem a história de suas comunidades e as matrizes culturais que as constituíram enquanto tais.
Foi neste contexto que a idéia da mostra Baixada.doc surgiu e tomou forma. Nascido da articulação entre o Programa de Educação Tutorial Conexão de Saberes e o Núcleo de Criação Audiovisual do curso de Produção Cultural do IFRJ, com o apoio do Laboratório de Estratégias Didáticas, o projeto assume-se como um desdobramento da oficina sobre cinema documentário realizada entre os meses de junho e agosto no Campus Nilópolis, que a partir de um panorama dos recursos narrativos e estilísticos mais expressivos no âmbito deste gênero, bem como da exibição comentada de algumas obras-chave do documentário brasileiro e mundial, propôs que os alunos participantes se envolvessem na produção de um vídeo de curta-metragem que abordasse algum aspecto cultural, social, econômico ou político relacionado à Baixada Fluminense. Além disso, também atuariam como realizadores da supracitada mostra como forma de progressivamente diluir as fronteiras entre produtores, realizadores, consumidores e, por que não, também personagens dos respectivos vídeos.
Mesmo em tempos supostamente globalizados, parece continuar valendo a máxima proferida certa feita pelo escritor russo Leon Tolstoi, segundo a qual para falar do mundo é preciso falar da própria aldeia. O que a Baixada.doc propõe é um deslocamento do lugar de onde se olha ou ainda, se preferirmos, uma afirmação do local como espaço privilegiado para se pensar as dinâmicas globais: assim, ao tornar-se protagonista de uma mostra de documentários, a Baixada Fluminense é, ao mesmo tempo, o objeto do olhar dos realizadores e um ponto a partir do qual diretores e público olham o mundo que os cerca.



[1] Professor do Curso Superior de Tecnologia em Produção Cultural, do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro (IFRJ).
Ministrou a oficina de Cinema Documentário para os alunos do PET/Conexões de Saberes em Produção Cultural.

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